A fome, do latim faminem, pode ser conceituada como uma resposta do organismo à baixa ou falta de nutrientes essenciais para a manutenção do metabolismo - muitas vezes está relacionada à miséria, que impede a manutenção de uma alimentação saudável e balanceada.
Tal resposta do organismo é regulada por mecanismos que identificam essa baixa ou falta desses nutrientes no organismo e mandam estímulos que são transformados em comandos: comandos que conscientemente iniciam a busca por alimentos e inconscientemente iniciam o metabolismo degradativo. O jejum, período sem absorção de alimentos, é importante para a manutenção das reservas energéticas, evitando acúmulos desnecessários (aumento de peso, aumento de tecido adiposo, etc). Mas, prolongado, o jejum começa a degradar demais o organismo, com o objetivo de manter o nível glicêmico estável (principal objetivo do metabolismo energético, juntamente com a concentração de ATP); mas o preço que se paga para tentar manter a glicemia às vezes é alto demais.
Os casos relatados e analisados a seguir têm todos uma coisa comum: a privação de alimentos, seja por um jejum prolongado forçado ou por condições extremas. Sendo assim, a base para o entendimento dos casos é o funcionamento do metabolismo degradativo, regulado pelo balanço entre os hormônios insulina e glucagon, principalmente.
Nosso primeiro exemplo extremo de privação é o caso dos sobreviventes do acidente aéreo de 1972 nos Andes, quando um avião da Força Aérea Uruguaia que ia do Uruguai ao Chile levando 45 passageiros caiu no dia 13 de outubro de 72. Dezessete, dos 45 passageiros, morreram na hora do choque. Outros morreram horas ou dias mais tarde devido aos ferimentos e agressões do clima. Os sobreviventes resistiram na Cordilheira por mais de 70 dias; no período, alguns pereceram pelo frio, por infecções ou soterrados, até que os 16 restantes foram resgatados no dia 23 de dezembro. Os sobreviventes mantiveram-se vivos comendo a carne dos companheiros mortos. O caso virou filme ( "Vivos!", 1993, de Frank Marshall).
De início, havia mantimentos para alguns dias, com a esperança de resgate. Mas depois de 8 dias, com o mau-tempo, os sobreviventes ouviram pelo rádio do avião a notícia de que as tentivas de resgate tinham sido finalizadas, sem nenhum êxito. Assim, nos dias seguintes, os mantimentos foram acabando. Sobre isso, um dos sobreviventes relatou:
"Certa manhã, lá para o fim da nossa primeira semana nas montanhas, vi-me de pé do lado de fora da fuselagem, a olhar para um amendoim coberto de chocolate que embalava na palma da mão. As nossas provisões estavam esgotadas, aquele era o último pedaço de comida que eu receberia e com um desespero triste, quase mesquinho, estava determinado a fazê-la durar. No primeiro dia, lambi lentamente o chocolate do amendoim, depois enfiei o amendoim no bolso das minhas calças. No segundo dia, separei com cuidado as duas metades do amendoim, voltando a enfiar uma metade no meu bolso e colocando a outra metade na boca. Chupei lentamente o amendoim durante horas, permitindo-me apenas uma minúscula mordidela de vez em quando. Fiz o mesmo no terceiro dia e quando, por fim, o amendoim desapareceu, já não havia absolutamente nada para comer.
Além do problema dos mantimentos, duas semanas depois do acidente, uma forte avalanche cobre os restos do avião e 8 dos integrantes morrem soterrados. Os demais se refugiam no avião e esperam alguns dias para sair e fazer buscas de outras partes do avião, com o objetivo de encontrarem mantimentos. Como a maioria das vezes eles não encontravam nada, medidas drásticas precisavam ser tomadas. Mesmo com a relutância de alguns, o grupo decide se alimentar da carne de seus companheiros mortos - afinal, por mais que eles conseguissem transformar neve em água potável (a um ritmo baixo, mas conseguiam), sem comida eles não sobreviveriam por muito mais tempo. E foi com o antropofagismo que 16 membros do grupo conseguiram sobreviver e buscar ajuda em regiões próximas, até que conseguiram contatar um fazendeiro depois de uma caminhada de 160 quilômetros e chamar resgate para o grupo no dia 23 de dezembro daquele ano.
Mas como se explica a sobrevivência durante tanto tempo consumindo carne humana? Primeiramente, deve-se elucidar que, depois de algum tempo se alimentando com porções pequenas de carne humana, o grupo, já bem reduzido, conseguiu encontrar um pouco de comida (não exclusivamente proteica), o que ajudou muito em sua sobrevivência, em especial quando reuniram toda sua energia para buscar ajuda.
A carne, composta basicamente de proteínas, era ingerida em pequenas porções, retiradas dos cadáveres. As proteínas alimentavam, então, o metabolismo energético dos sobreviventes, que já tinham queimado toda a reserva de carboidrato e não tinham mais como obtê-lo. Acentua-se, então, o processo de proteólise muscular, onde a quebra das proteínas estruturais em aminoácidos e a transformação desses em piruvato (podendo produzir alanina como intermediário). O piruvato então, produzido no fígado através dos aminoácidos intermediários na corrente sanguínea, serve de substrato para a gliconeogênese, que atua em ritmo máximo (comandada pela ação majoritária do glucagon), transformando-se em glicose circulante.
Os ácidos graxos e triacilgliceróis mobilizados das reservas lipídicas também são degradados por comando do glucagon, e tal degradação não é acompanhada de uma degradação paralela de carboidratos (já que não são ingeridos), o que gera um acúmulo de Acetil-CoA no fígado. Com a gliconeogênese em ritmo acelerado, não há oxalacetato livre suficiente para participar do Ciclo de Krebs com o Acetil-CoA, o que impede a oxidação indiscriminada do último, que se condensa em corpos cetônicos, importantíssimos para o Sistema Nervoso Central (SNC) como reserva energética preferencial, depois da glicose.
O jejum prolongado, graças à relação extremamente desequilibrada de insulina e glucagon, acentua o processo degradativo do organismo. As reservas lipídicas vão ficando escassas e a proteólise é a principal fonte de substrato para a gliconeogênese. Os corpos cetônicos reduzem a necessidade por glicose do SNC, o que já economiza bastante a glicose provinda do fígado. Mas a contínua degradação de proteína nos músculos esqueléticos vai sendo cada vez mais prejudicial, causando perda muscular intensa. O consumo de proteínas pelos sobreviventes foi essencial para que eles continuassem vivos: uma perda muito significativa de massa numa temperatura de 30º negativos seria fatal.
Mas, mesmo com um certo "estoque" de proteínas, a situação não poderia se manter por muito mais tempo. Como falamos, os corpos cetônicos estavam suprindo as necessidades do SNC, mas a contínua produção deles com a degradação das reservas lipídicas (tecido adiposo) estava chegando a um ponto crítico: corpos cetônicos, por seu caráter ácido, não podem ficar em excesso no organismo, pois pode se instalar uma situação de acidose, a cetoacidose - que pode ocasionar sérios problemas cerebrais, como edemas cerebrais com alto risco de morte.
Outro problema paralelo é a gliconeogênese contínua no fígado e nos rins, abastecida por aminoácidos (alanina e glutamina), que aumenta significativamente a produção de uréia (fígado) e amônia (rins) - as cadeias carbônicas dos aminoácidos são usadas para a produção de glicose, os grupamentos amino são transformados em uréia/amônia. A amônia tem que ser transformada em uréia no fígado (ciclo da uréia), por ser muito tóxica. Com isso, além da uréia produzida pela própria gliconeogênese no fígado, ainda há a produzida pelo ciclo da uréia. E excesso de uréia na corrente sanguínea (por incapacidade do rim de filtrá-la acompanhando o ritmo de produção) causa a uremia, que pode causar distúrbios como náuseas e vômitos, o que afetaria ainda mais o metabolismo dos sobreviventes.
A determinação e a busca por ajuda foram essenciais e bem à tempo para garantir que os últimos 16 sobrevivessem e aguentassem até o resgate. (Na foto, momento de euforia com a chegada das equipes de resgate ao local)
Nosso próximo caso extremo de privação é a greve de fome, especificamente o caso da greve de fome de 135 dias do dissidente cubano Guillermo Fariñas, que terminou semana passada. Seus motivos são políticos: ele objetivava manifestar contra o governo de Raúl Castro, que mantém 52 presos políticos na ilha. Fariñas havia prometido terminar a greve somente com a liberação de pelo menos 10 dos 52, mas a libertação de 5 deles e a situação de saúde crítica de Fariñas forçaram-no a findar sua privação.
Não há como o organismo sobreviver tanto tempo sem nutrientes. Como então ele ficou 135 dias? Acontece que, depois de aproximadamente um mês de sua greve de fome e mínima ingestão de líquidos em sua casa, ele sofreu um desmaio e teve de ser levado para a emergência do hospital de Havana no dia 11 de março. Desde então, ele recebe alimentação intravenosa (com nutrientes leves, como relatam as reportagens) - o que resultou num ganho de peso nos primeiros dias. Só a alimentação intravenosa não é suficiente para substituir uma alimentação normal e completa de nutrientes, mas apenas mantê-lo vivo na cama de hospital. Mas, mesmo assim, a principal fase da greve de fome na alteração de seu metabolismo foi o primeiro mês de privação.
Sem comer por mais de 12 horas (já considerado jejum prolongado), o organismo de Guillermo começa a passar pelas mesmas transformações que os sobreviventes dos Andes: proteólise e lipólise, estimuladas pelos comandos do glucagon (quase nenhuma inibição por parte da insulina, já que não há absorção de nutrientes), tentam compensar a falta de carboidratos para produzir glicose - e corpos cetônicos que auxiliam na nutrição do SNC em situação de jejum. Mas, diferentemente deles, Guillermo não faz isso por falta de alimentos, ele voluntariamente se mantém nessa situação, sem nem ingerir as proteínas que os sobreviventes ingeriam através da carne humana. Guillermo obriga seu organismo a usar somente as suas reservas: proteínas dos músculos esqueléticos e ácidos graxos/triacilgliceróis das reservas lipídicas (tecido adiposo). Sem reposição protéica, a degradação muscular é acentuada, e começa a ficar escassa a fonte de proteínas, levando a uma queda na produção de glicose. O corpo, assim, direciona toda a energia para a proteólise e lipólise, objetivando sempre a manutenção da glicemia e a produção de corpos cetônicos.
Com o jejum cada vez mais prolongado, o corpo fica com cada vez menos energia, músculos degradados e com um início de acidose; o corpo fraqueja. O movimento e as defesas ficam prejudicadas. Guillermo desmaia e é internado. Mas só a alimentação intravenosa não é suficiente para recuperar os sistemas lesados. Entre eles o imunológico - o corpo fica muito mais suscetível a infecções, por exemplo. E foi o que aconteceu: depois de algum tempo com a alimentação via cateter, houve uma infecção generalizada. Além disso, criou-se um coágulo venoso no pescoço de Guillermo - uma trombose -, que poderia atingir o coração e/ou os pulmões e matá-lo. A trombose provavelmente foi também causada pela introdução do alimento intravenoso e/ou graças à infecção. Se não acabasse logo com a greve de fome, a falta de nutrientes acabaria com ele.
Para terminar, falaremos de um caso de inanição - que nada mais é do que a fraqueza causada pela fome extrema - : a morte por inanição usada na eutanásia - caso de Terri Schiavo em 2005 (foto à esquerda).
Graças a uma parada cardíaca em 1990, Theresa Marie Schindler-Schiavo sofreu uma desoxigenação do cérebro, que resultou numa severa lesão cerebral irreversível. Em estado de coma durante 15 anos, em 2005 seu tubo de alimentação foi removido após comprovação do estado crítico de atrofia cerebral e da ausência completa de consciência. Com a remoção do tubo, Terri Schiavo morreu de inanição 14 dias após a retirada do tubo. A grande ironia do destino é que a bulimia causadora de sua parada cardíaca é comumente uma causa direta de inanição.
A morte por inanição, no caso da eutanásia, ocorre da seguinte forma:
1. Os médicos realizam um processo cirúrgico para remover um tubo subcutâneo que leva os alimentos para o estômago.
2. A produção de urina diminui enquanto o paciente vai eliminando secreções normais do corpo. A boca começa a parecer seca e os olhos perdem o brilho.
3. O emagrecimento começa a ser visível como causa de uma desnutrição aguda. Os batimentos cardíacos gradualmente caem e a pressão arterial diminui.
4. O cérebro começa a sentir a falta de glicose e de oxigênio. Inicia-se a morte dos neurônios.
5. O paciente já não responde ao ambiente que o rodeia. Há marcas sérias de desidratação, como a pele extremamente seca.
6. A função dos rins fica gravemente prejudicada e as toxinas se acumulam no organismo. Há falência da oxigenação dos músculos e vários sistemas começam a falhar por falta de nutrição
7. Com a falta de combustível, o cérebro não consegue enviar as ordens de funcionamento para o resto do corpo. Ocorre a falência geral dos órgãos e a morte.
Muito bom o texto! Parabéns, estou usando para estudar para prova de Bioquimica hehe
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