05 agosto, 2010

Extremo das Altitudes



Nas grandes altitudes, como no majestoso Monte Evereste (foto acima), na Cordilheira do Himalaia (Ásia Central), o organismo passa por diversas provações e se encontra em condições verdadeiramente extremas. Por curiosidade, vejamos quais são os 14 maiores picos do mundo, cuja escalada é motivo de honra para os alpinistas do todo o mundo:

  • Everest (8.850 metros), no Himalaia, na fronteira entre o Nepal e o Tibete;
  • K-2 (8.611 metros), nos montes Karakoram, no Paquistão;
  • Kanchenjunga (8.598 metros), no Himalaia, lado nepalês;
  • Lhotse (8.501 metros), Himalaia, lado nepalês;
  • Makalu (8.463 metros), Himalaia, lado nepalês;
  • Cho Oyu (8.201 metros), Himalaia, lado nepalês;
  • Dhaulagiri (8.167 metros), Himalaia, lado nepalês;
  • Manaslu (8.156 metros), Himalaia, lado nepalês;
  • Annapurna (8.091 metros), Himalaia, lado nepalês;
  • Hidden Peak (8.068 metros), montes Karakoram, no Paquistão;
  • Broad Peak (8.046 metros), montes Karakoram, no Paquistão;
  • Shisha Pangma (8.046 metros), Himalaia, lado tibetano e
  • Gasherbrum II (8.034 metros), Paquistão.
Apesar de só relatar picos das maiores montanhas, todos acima de 8.000 metros, as condições adversas das grandes altitudes começam em altitudes muito menores. Acima dos 2.500 metros de altura, aproximadamente, começam os problemas - como mostrado na figura à direita. Problemas esses chamados Doenças ou Males de Altitude (altitude sickness).

Vejamos as condições que levam a esses males. Um dos primeiros sintomas sentidos nas grandes e extremas altitudes é o frio constante, intensificado pelos fortes ventos - que também dão uma sensação de secura do ar. E a estimativa é de que, a cada 100 metros de altura, a temperatura caia de 1ºC.
Além dos problemas clássicos relacionados ao frio - hipotermia, por exemplo -, a baixa temperatura agrava os problemas causados pela principal privação das grandes altitudes: a baixa pressão parcial de oxigênio (PO2), ou seja, a baixa oxigenação.

O que significa essa Pressão parcial de O2? Acontece que, quanto maior a altitude de um lugar em relação à crosta terrestre, menor é a sua pressão atmosférica. Isso porque a quantidade absoluta de ar diminui proporcionalmente à altitude. Sendo assim, a baixa oxigenação é resultado a diminuição do ar atmosférico como um todo, e não do oxigênio especificamente. Tanto é assim que o teor de oxigênio é de 21% do ar atmosférico seja ao nível do mar ou no Evereste - a diferença é que no Evereste, há 30% do ar que há ao nível do mar, e, consequentemente, 30% do oxigênio. No gráfico ao lado podemos analisar a relação da altitude com a PO2 e algumas regiões.

Depois de toda essa enrolação... quais são então os reflexos dessa baixa pressão de oxigênio no organismo quando escalando ou vivendo em regiões altas? Acontece o que chamamos de Hipóxia (ou Hipóxia de Altitude, no caso), que é o metabolismo em baixa oxigenação (hipo=baixa, oxia=oxigenação). O oxigênio nos é vital por ser o último aceptor de elétrons da cadeia fosforilativa - sem a qual não temos energia o suficiente para manter nosso funcionamento ideal (existem as formas anaeróbicas de produção de energia, mas não são viáveis por muito tempo). Além da produção de energia, o oxigênio, recebendo completamente os elétrons, evita o acúmulo desses elétrons e a formação de espécies eletricamente carregadas e extremamente reativas, as Espécies Reativas de Oxigênio (ERO's) caracterizadas como radicais livres. O corpo sempre procura manter um balanço dessas espécies através de oxidações e reduções. O desbalanço dessas espécies, como o causado pela queda da oxigenação, é chamado de stress oxidativo. O stress oxidativo é extremamente perigoso pois esses radicais livres (entre eles as ERO's) são responsáveis por degradar membranas, organelas e diversos componentes celulares, prejudicando o funcionamento do organismo - proporcionalmente à quantidade de radicais livres.

Um mal muitíssimo comum (cerca de 60% dos alpinistas apresentam) é o Mal das Montanhas, causado pelo stress oxidativo dos primeiros estágios das escaladas e agravado pelo extremo frio (baixa do sistema imunológico). Seus sintomas são: cefaléia (dores de cabeça), náusea, vômitos (e consequente desidratação), tonturas e prostração (cansaço extremo e desmaios). Pode ser corrigido por antioxidantes (redutores do stress oxidativo), redução do ritmo de subida, descer alguns níveis, suprimento por balão de oxigênio, entre outros. Quando muito elevado (altitudes muito acima de 3000 metros), o stress oxidativo e os outros sintomas podem se agravar e gerar o Mal Agudo das Montanhas, que gera dores de cabeça muito fortes, vertigem, desmaios, vômitos. A vasodilatação no encéfalo pode acabar causando edemas, que veremos posteriormente.

Uma das respostas do corpo, de maneira imediata, à hipóxia é a hiperventilação: aumentar o ritmo respiratório (como ao fim dos exercícios físicos e/ou situações de fadiga extrema) para aumentar a captação de O2 no pulmão. É uma estratégia relativamente eficiente num primeiro momento para suprir os órgãos de oxigênio (evitando a hipoxilemia - baixa oxigenação dos órgãos). Juntamente com um aumento no ritmo respiratório, o coração aumenta seu ritmo de bombeamento para que o sangue possa distribuir mais rapidamente o oxigênio captado. Para colaborar com o aumento da circulação, ocorre a vasodilatação e o aumento da permeabilidade dos vasos, para facilitar a passagem de O2 para os órgãos.

O problema em situação de hiperventilação é que o organismo acaba eliminando CO2 em excesso (mais do que capta O2), o que causa uma alcalose do sangue (aumento significativo do pH sanguíneo por falta de ácido carbônico). A alcalose, o aumento da permeabilidade dos vasos e a vasodilatação são os principais responsáveis por causar o vasamento de líquido dos vasos para os órgãos, causando os chamados edemas - especialmente na região da hematose (alvéolospulmonares) e na região encefálica (onde a vasodilatação é bem pronunciada). Os edemas podem matar e devem ser identificados rapidamente: o pulmonar pode matar em poucos dias e o cerebral, em poucas horas.

Mas, com tantos problemas, como é possível que se passem semanas ou até meses (ou mesmo anos, no caso de quem vive nas altitudes) nas grandes altitudes? Existe algum mecanismo de adaptação? A resposta é "sim", existem mecanismos para o que é chamado de período de aclimatação. Acontecem nas duas primeiras semanas em grandes altitudes (mais de 2800 metros, via de regra), e são responsáveis por otimizar o funcionamento do organismo em situação de baixa oxigenação. A lógica da aclimatação é: se o corpo tem pouco oxigênio à disposição, deve-se otimizar a captação do oxigênio do meio. E que "ferramenta" é responsável pela captação eficaz de oxigênio na hematose? A nossa querida ferroproteína sanguínea presente nos glóbulos vermelhos (hemácias): a hemoglobina. O corpo então trabalha para aumentar o nível de hemoglobina no sangue. Detalharemos como isso ocorre a seguir.

Em uma situação de hipóxia, são acionados os HIF's - Hipoxia-Induced Factor's (Fatores Induzidos por Hipóxia), responsáveis por uma série de mudanças metabólicas relacionadas com a produção de eritrócitos (células vermelhas do sangue) - os HIF's atuam na expressão de genes responsáveis pela produção dos fatores necessários nessa eritropoiese, como o ferro e a proteína eritropoietina (EPO). Os HIF's promovem a secreção de EPO pelos rins (e fígado, menos importante), ativa os receptores de EPO na medula óssea, ativa fatores que melhoram a absorção de ferro no sistema digestório, ativa seu armazenamento e seu transporte para a medula óssea.



Com a eritropoietina e o ferro na médula óssea, ocorre a eritropoiese (formação de eritrócitos - hemácias iniciais). Com o aumento do número de eritrócitos e, consequentemente, hemácias, há um aumento na quantidade de hemoglobina no sangue. O objetivo inicial de captação é atingido. Mas com a contínua baixa de oxigenação e eritropoiese mediada por HIF's (mostrada na figura ao lado), o número de hemácias no sangue começa a ser prejudicial: embora haja o aumento significativo na eficiência de captação de oxigênio, a distribuição deste é prejudicada. O aumento de hemácias gera uma aumento proporcional na viscosidade do sangue, que começa a circular mais lentamente. Com isso, a pressão cardíaca é aumentada para tentar circular esse sangue mais viscoso. Mas de pouco adianta o aumento da pressão - só serve para aumentar as chances de rompimentos de vasos e formação de edemas. Por isso os edemas são mais observados depois de algumas semanas em grandes altitudes: juntam-se os fatores de risco iniciais com o aumento de viscosidade do plasma e aumento de pressão sanguínea. Além disso, todos esses fatores estão evolutivamente relacionados com baixa fertilidade em povos que vivem nessas regiões (exceto os tibetanos, e veremos o motivo).

Dos povos que vivem em grandes altitudes, os dois principais são os andinos e os tibetanos. Desses, os tibetanos são os que vivem há mais tempo (dados arqueológicos indicam até 7 milênios de existência, mas há discussão), e uma pesquisa recente (publicada na Science de Julho de 2010) de uma equipe internacional de pesquisadores e cientistas atentou para o fato de os tibetanos, comparados aos demais chineses e outros povos, como os andinos, que vivem em grandes altitudes, terem maior taxa de fertilidade e menos ocorrência de males da montanha. A reportagem da Science sobre o paper pode ser lida ao clicar na imagem:



Em suma, a pesquisa mostra traços de uma possível evolução dentro da espécie humana: os tibetanos seriam geneticamente adaptados a enfrentar as condições adversas. A teoria é baseada pelo fato de que a codificação dos genes responsáveis pelos HIF's teria modificações nos tibetanos, o que evitaria a eritropoiese mediada por HIF's, reduzindo drasticamente a quantidade de hemoglobina nos tibetanos. Mas também não haveria o problema da viscosidade sanguínea, pior problema encontrado pelos demais povos de altitude. Além disso, foi atestado que os tibetanos apresentam outros mecanismos que compensam a baixa captação na hora de evitar o stress oxidativo e a eficiência na distribuição do oxigênio captado. Entre esses mecanismos, podem ser descritos o aumento dos capilares (maior eficiência circulatória, menor probabilidade de hipoxilemia),diminuição do número de mitocôndrias (e da necessidade de oxigênio), como mostrado na tabela ao lado, e maior produção de agentes antioxidantes.

Abaixo, painel da apresentação do tema (por Mateus Félix) pelo grupo de extremos, contendo as principais referências bibliográficas do post.

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